O Fundão passou, este sábado, a contar com uma obra única no país dedicada à sua identidade musical. Foi apresentado, no Octógono, o livro “Fundão: Memória, Tradição e Música”, dos autores José Alberto Sardinha e David Amaral de Brito. Um trabalho “monumental” de dois volumes, com 840 páginas e 362 documentos sonoros selecionados de entre quase mil gravações recolhidas em todas as freguesias do concelho.
A obra resulta de um levantamento etnomusical iniciado em 1970 e complementado nas últimas décadas, com novas gravações e registos feitos diretamente nas aldeias. Um processo que, segundo os autores, visou “não deixar nenhuma freguesia de fora” e corrigir desigualdades entre géneros musicais e tradições locais.
“Estamos perante o livro mais importante do concelho do Fundão”, afirmou o presidente da Câmara, Paulo Fernandes, sublinhando que se trata de um “trabalho enciclopédico e tão próximo do nosso ADN cultural, nas suas diferentes expressividades”. O autarca destacou também que “se há livro que representa a nossa comunidade, é este”, considerando-o uma verdadeira homenagem coletiva a todos os que contribuíram para manter viva a tradição musical do concelho.
O edil propôs mesmo que se veja nesta edição “um símbolo da expressão coletiva e da enorme gratidão pelos autores”, que fizeram do livro não só um documento histórico, mas também um arquivo sonoro da cultura fundanense. “Temos aqui vozes reais, sons que passaram de geração em geração — é património vivo, é uma manifestação de resiliência.”
A apresentação contou com uma mesa-redonda moderada por Pedro Salvado e com a participação de várias figuras ligadas à cultura e à investigação musical: Maria Adelaide Salvado, Joaquim Candeias, António Catana, Albano Matos Mendes, José Joaquim Geada, Miguel Proença e Pedro Delgado.
O livro foi apresentado por Luís Raposo, arqueólogo, homem de cultura e presidente do ICOM Europa, que o descreveu como uma obra “comovente e humilde, mas absolutamente monumental”, que presta homenagem a “muitos mestres do século XIX e XX”. Para o arqueólogo, este é um livro para “ler e ouvir devagar, com deleite”, e uma referência obrigatória para todos os que queiram compreender o conceito de tradição musical.
Dividida em dois volumes, a obra cobre todo o ciclo do ano agro-religioso: cantos de trabalho, cânticos religiosos como as Encomendações das Almas ou os Penitentes, o romanceiro tradicional, festas populares, modas bailadas e instrumentos como o adufe, os bombos e os pífaros. Entre os destaques, estão o fabordão do Fundão, várias versões do fandango e a moda da Santa Luzia — práticas que o livro documenta em texto, som e imagem, com fotografias de Miguel Proença e Pedro Delgado.
José Alberto Sardinha, responsável pelas primeiras recolhas nos anos 70, lembrou que “a tradição musical não tem certidão de nascimento”, referindo, que, o que tem o Fundão de especial é a resiliência com que preservou estas tradições até hoje, moldando-as à sua identidade. Sublinhou também a importância da polifonia tradicional e da singularidade dos instrumentos musicais da região.
David Amaral de Brito, que coordenou a recolha mais recente, explicou que 70% dos registos foram feitos depois de 2015, o que faz desta obra uma verdadeira “memória viva, que é igual a tradição”. A obra, diz, nasceu da vontade de “partilhar este legado com todos”, e deve servir como “instrumento de aprendizagem e ponto de partida para quem queira recriar ou dar continuidade às tradições musicais do concelho”.
Durante a sessão, houve ainda momentos musicais com intérpretes populares de várias freguesias — com arranjos de Nelo Abrantes e Paulo Geraldes — que deram vida a algumas das modas e cantos retratados na obra.
No final, antes de todos entoarem o Canto da Santa Luzia, Alcina Cerdeira, vereadora municipal que desde o início incentivou a edição desta obra, propôs ter todos os anos umas jornadas dedicadas ao património cultural e imaterial do concelho do Fundão, bem como um espetáculo com todas as tradições musicais que passe por todas as aldeias. A prova de que a obra será assim uma ferramenta para o futuro.